quinta-feira, 6 de março de 2008

Intercepção

Cresci numa aldeia pequena onde havia um cruzamento chamado “Quatro-Estradas”. Este não era o único cruzamento na aldeia com uma intercepção de quatro estradas e por isso, durante muitos anos, a minha mente de criança viveu intrigada. Cheguei a contar, em segredo, o número de cruzamentos idênticos em toda a aldeia – eram mais de vinte. Mas que tivessem nome de Quatro-Estradas só existia um, e relativamente a isso nunca houve enganos dignos de registo.

Se alguém queria combinar um encontro, era nas Quatro-Estradas. O posto de saúde, era nas Quatro-Estradas. O café depois de um almoço de sábado requeria peregrinação até às Quatro-Estradas. O campo de futebol oficial ficava no encalço das Quatro-Estradas. Qualquer estrada rumo às obras de notoriedade da aldeia – um aeródromo, uma prisão feminina e um famoso hospital do qual ainda hoje não se viu um tijolo - tinha assegurada a travessia deste famoso cruzamento. Por muito que se procurasse, não se encontrava ninguém vivo ou morto na aldeia que não tivesse um parente nas Quatro-Estradas. Eu, tinha uma tia que me visitava todos os sábados de manhã, para me trazer um sorriso e motivação para estudar.

Mas não se enganem, as Quatro-Estradas nunca foram um lugar bonito. Tinham no destino a urgência de um cruzamento famoso. E como se isso não fosse suficiente, ainda tinham o carácter de uma coisa desconfortável. Os passeios eram estreitos e escorregadios. Os emparedados das casas eram de tal forma deslavados que cravavam a cinzento até o céu mais azul. O frio era sempre demasiado frio e sol sempre demasiado quente. A noite trazia um silêncio espesso e uma cacimba rasgada de tempo a tempo por vultos assustadores. A boca dos populares tornou conhecidas histórias sobre as intenções diabólicas deste lugar. Mas de diabólico apenas se teve a prova viva de muitos acidentes de viação por embriaguez e uns quantos abalroamentos de peões que se aventuravam num travessia desatenta.

Para além da curiosidade estimulante do nome, as Quatro-Estradas pouco trouxeram à minha infância. Verdade se diga que o lugar em si nunca me trouxe entusiasmo. Pelo menos não tanto como as praias de extensos areais. Ou como as ruas antigas das nossas cidades, revestidas a paredes da azulejo e gentes modernas. Mas durante muitos anos esta falta de entusiasmo foi traída por um nome invulgar que tardava em ficar compreendido.

Fazia pouco tempo que tinha trocado a figura franzina, os óculos e o fato de treino da infância pela confiança e determinação da adolescência, quando encontrei esclarecimento. Num livro gasto lia-se “Quatro-Estradas, zona de intercepção de vias destinadas ao tráfego entre populações. Pela sua natureza, estas zonas de intercepção constituem um espaço privilegiado na realização de trocas comerciais, no estabelecimento de convenções, na difusão cultural, na partilha de informações o noutras acções de relevância social. Quatro-Estradas são zonas de intercepção entre povos com valor inestimável.”

Sexta-feira, final do dia. Conduzo para um jantar da família. O Inverno instalou-se e escurece cada vez mais cedo. Esfrego as mãos na tentativa de afastar o frio. Ligo as luzes do carro. Encontro um sinal de desvio, uma seta amarela numa moldura branca. Em letras garrafais lê-se “Desvio pelas Quatro-Estradas”. Mas podia ler-se apenas “Desvio”.

Moreira

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